Durante a gestação, o útero passa por transformações incríveis para abrigar, nutrir e proteger o bebê até que ele esteja pronto para nascer. Uma das estruturas fundamentais nesse processo é o colo uterino, que age como uma “porta de segurança”, mantendo o bebê dentro do útero até o momento certo.
Mas em algumas mulheres, essa “porta” pode se abrir antes da hora, de forma silenciosa e progressiva, sem dor ou contrações. É aí que entramos no campo da Insuficiência Ístmico-Cervical (IIC) — uma condição que merece atenção, acolhimento e cuidado baseado em evidências.
O que é a Insuficiência Ístmico-Cervical?
A Insuficiência Ístmico-Cervical (IIC) é definida como a incapacidade do colo uterino de manter-se fechado durante a gestação, o que pode levar a perdas gestacionais tardias (geralmente no segundo trimestre) ou parto prematuro espontâneo, sem sinais prévios de trabalho de parto.
É uma condição caracterizada por encurtamento e dilatação indolor do colo do útero, geralmente sem dor, contrações ou sangramento — o que a torna difícil de diagnosticar precocemente sem acompanhamento atento.
Incompetência ou Insuficiência? A importância da linguagem no cuidado humanizado
Por muitos anos, essa condição foi chamada de “incompetência ístmico-cervical”, termo ainda utilizado em muitos guidelines internacionais (como os da ACOG e da SMFM). No entanto, a palavra “incompetência” carrega um peso emocional negativo, podendo reforçar sentimentos de culpa, inadequação ou fracasso em gestantes que já estão enfrentando perdas ou riscos.
Por isso, em contextos de cuidado humanizado como o do Instituto Nascer, preferimos utilizar o termo “insuficiência ístmico-cervical”, mais técnico e menos carregado de julgamento subjetivo. Afinal, não é a mulher que falha — é uma condição médica, multifatorial, e que pode ser manejada com ciência, empatia e acolhimento.
Como é feito o diagnóstico da IIC?
O diagnóstico da IIC pode ser difícil e desafiador, pois não existe um único exame ou marcador definitivo. Ele é feito com base em:
📝 1. História clínica
- Perdas gestacionais tardias inexplicadas (geralmente entre 16 e 24 semanas), sem dor ou trabalho de parto
- Partos prematuros muito precoces em gestações anteriores, com dilatação cervical rápida e indolor
🔍 2. Avaliação ultrassonográfica
- Medição do comprimento do colo uterino por ultrassonografia transvaginal, geralmente entre 16 e 24 semanas.
- Colo ≤ 25 mm em mulheres com história sugestiva de IIC pode indicar insuficiência cervical.
- Presença de funneling (afunilamento do canal cervical) e dilatação interna precoce reforça o diagnóstico.
⚠️ 3. Exame físico (em casos avançados)
- Dilatação indolor ao toque vaginal em gestações ainda pré-viáveis, por vezes com protrusão de membranas amnióticas.
Quais são os riscos da IIC?
A insuficiência ístmico-cervical está associada a:
- Perda gestacional tardia (entre 16-24 semanas)
- Parto prematuro espontâneo, especialmente antes das 32 semanas
- Bolsa rota precoce
- Infecção intrauterina (corioamnionite)
- Trauma psicológico materno por perdas repetidas e vivências de frustração ou impotência
Por isso, o diagnóstico precoce e o acompanhamento adequado são cruciais.
Como é feito o manejo?
O tratamento da IIC é centrado em prevenir que o colo se abra precocemente. As opções terapêuticas incluem:
✅ Cerclagem uterina (ponto no colo do útero)
- Indicada em casos com história obstétrica sugestiva de IIC ou em mulheres com colo ≤ 25 mm e histórico de parto prematuro.
- Pode ser história-indicada, ultrassonográfica ou de emergência (rescue cerclage).
- Reduz o risco de prematuridade em populações bem selecionadas.
✅ Progesterona vaginal
- Em casos de colo curto sem história de prematuridade, pode ajudar a reduzir o risco de parto prematuro.
- Uso diário por via vaginal, geralmente com 200 mg até 36-37 semanas.
✅ Pessário cervical (em avaliação)
- Algumas evidências mostram benefício, mas seu uso ainda é controverso e não substitui a cerclagem em casos de IIC clássica.
E depois da cerclagem? Qual o plano de cuidado?
Mulheres com cerclagem devem ser acompanhadas de forma próxima, com:
- Avaliação frequente de sintomas de contração ou infecção
- Repouso relativo (não há evidência para repouso absoluto)
- Suporte emocional, pois o estresse e a ansiedade são frequentes nesse grupo
- Plano de remoção da cerclagem, geralmente entre 36 e 37 semanas
Insuficiência cervical no Brasil: entre o abandono e o excesso
Assim como acontece com a cerclagem, o cuidado com a IIC no Brasil vive um paradoxo:
📉 De um lado, mulheres que deveriam receber diagnóstico e tratamento oportuno, mas não têm acesso a especialistas, ultrassonografia transvaginal de qualidade ou cerclagem em tempo hábil.
📈 De outro lado, há excesso de diagnósticos mal fundamentados, levando à medicalização e intervenções sem real benefício — incluindo cerclagens feitas sem história clínica compatível ou apenas por colo curto isolado em gestações de baixo risco.
Nossa visão no Instituto Nascer
A insuficiência ístmico-cervical é uma condição sensível, desafiadora e impactante na vida de muitas mulheres. Aqui no Instituto Nascer, acolhemos cada história com respeito, sem julgamentos, e com base na melhor ciência disponível.
Valorizamos o uso racional e humanizado dos recursos diagnósticos e terapêuticos, e nos comprometemos a nunca transformar a dor da perda em culpa — mas sim em cuidado, escuta e reconstrução.
O colo pode falhar. A mulher, nunca falha.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455
📚 Fontes científicas e diretrizes utilizadas:
- ACOG Practice Bulletin No. 234: Prediction and Prevention of Preterm Birth. Obstet Gynecol. 2021.
- SMFM Consult Series #47: Cervical Insufficiency. Am J Obstet Gynecol. 2020.
- RCOG Green-top Guideline No. 60: Cervical Cerclage. 2022.
- NICE Guideline [NG25]: Preterm labour and birth. 2022.
- Cochrane Database of Systematic Reviews: Cerclage for preventing preterm birth. Berghella et al., 2017.