Perder um bebê durante a gestação é uma experiência profundamente dolorosa. Para algumas mulheres, infelizmente, essa perda acontece mais de uma vez — e é nesses casos que falamos em abortamento de repetição, também conhecido como aborto recorrente.
O que é abortamento de repetição?
De acordo com a definição do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) e da American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG), o abortamento de repetição é caracterizado por duas ou mais perdas gestacionais consecutivas antes de 20 semanas de gestação. Antes, era comum definir como três perdas consecutivas, mas as evidências mais recentes sugerem que a investigação pode ser iniciada após duas perdas, especialmente quando há sofrimento emocional significativo, idade materna avançada ou histórico obstétrico preocupante.
Quais são as principais causas?
Nem sempre conseguimos identificar uma causa específica, mas as principais etiologias associadas ao abortamento de repetição incluem:
- Alterações genéticas: principalmente translocações cromossômicas balanceadas em um dos pais. Podem ser detectadas por cariótipo.
- Causas uterinas anatômicas: como septos uterinos, miomas submucosos, sinéquias ou malformações congênitas.
- Trombofilias adquiridas: especialmente a Síndrome Antifosfolípide (SAF), que está bem estabelecida como causa de abortos de repetição.
- Distúrbios endócrinos: como disfunção da tireoide (hipotireoidismo ou hipertireoidismo), síndrome dos ovários policísticos e diabetes mal controlado.
- Alterações imunológicas: embora controversas, há pesquisas que associam desequilíbrios na tolerância imunológica materno-fetal com perdas recorrentes.
- Fatores infecciosos: embora infecções agudas possam causar aborto, não se recomenda rastreio rotineiro para infecções como clamídia, toxoplasmose, citomegalovírus ou listeriose como parte da investigação de abortamento de repetição.
- Fatores ambientais e de estilo de vida: como tabagismo, consumo excessivo de álcool, obesidade, uso de drogas ilícitas e exposição ocupacional a toxinas.
- Fatores idiopáticos: infelizmente, em até 50% dos casos, nenhuma causa é encontrada mesmo após uma investigação completa.
Quando investigar?
A recomendação atual da ACOG, RCOG e da diretriz da ESHRE (European Society of Human Reproduction and Embryology) é iniciar a investigação após duas perdas gestacionais consecutivas no primeiro trimestre, ou qualquer perda no segundo trimestre sem causa aparente.
Idade materna avançada, história familiar de trombofilia, perda gestacional com feto morfologicamente normal, perdas após tratamentos de fertilidade ou forte sofrimento emocional também são fatores que podem justificar o início precoce da investigação.
Como é feita a investigação?
A investigação do abortamento de repetição é multifatorial e deve ser individualizada. Os principais exames indicados incluem:
- Cariótipo dos pais (análise cromossômica) – para avaliar translocações balanceadas.
- Avaliação da cavidade uterina: Ultrassonografia transvaginal (preferencialmente histerossalpingografia ou histeroscopia).
- Teste para Síndrome Antifosfolípide: anticoagulante lúpico, anticardiolipina e anti-β2-glicoproteína I (IgG e IgM) – em duas dosagens com intervalo de pelo menos 12 semanas.
- Dosagem de TSH e prolactina – para triagem de disfunções endócrinas.
- Avaliação de diabetes e função adrenal se houver suspeita clínica.
Exames como estudo de trombofilias hereditárias (Fator V de Leiden, mutações do gene da protrombina, deficiência de proteína S, C e antitrombina) são controversos e não recomendados rotineiramente, pois raramente impactam a conduta clínica.
Nem toda perda precisa de uma investigação profunda
É fundamental lembrar que a maioria dos abortamentos esporádicos no primeiro trimestre são eventos naturais e não indicam problemas de saúde na mulher. Mais de 70-80% dos casos decorrem de alterações cromossômicas esporádicas no embrião — e nesses casos, o risco de uma nova perda não é maior do que o da população geral.
No Brasil, por ansiedade materna, por pressão familiar ou até mesmo por excesso de zelo médico, muitas mulheres que tiveram apenas uma perda gestacional precoce já são submetidas a uma investigação extensa e, muitas vezes, desnecessária. Isso pode gerar mais angústia, custos e intervenções sem benefício.
Por outro lado, também vemos o oposto: mulheres com três ou mais perdas consecutivas que nunca foram devidamente investigadas, sendo desvalorizadas em sua dor ou orientadas a “tentar de novo” sem suporte emocional ou clínico adequado.
Por isso, é fundamental que a decisão de investigar ou não seja baseada em evidências científicas, mas também acolha o contexto emocional da mulher ou do casal. Um cuidado humanizado, ético e baseado em ciência é essencial para garantir segurança e confiança ao longo da jornada reprodutiva.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455
Referências:
- American College of Obstetricians and Gynecologists. Practice Bulletin No. 200: Early Pregnancy Loss. Obstet Gynecol. 2018.
- Royal College of Obstetricians and Gynaecologists. The investigation and treatment of couples with recurrent first-trimester and second-trimester miscarriage. Green-top Guideline No. 17, 2011 (updated 2023).
- ESHRE Guideline Group on Recurrent Pregnancy Loss. Recurrent pregnancy loss: guideline of the European Society of Human Reproduction and Embryology. Hum Reprod Open. 2023.
- UpToDate. Evaluation of couples with recurrent pregnancy loss. Updated 2024.
- Cochrane Library: Recurrent miscarriage interventions and evidence-based approaches.