“A decisão sobre a via de nascimento – parto normal ou cesariana – é uma das mais importantes da gestação. Mas será que essa escolha é, de fato, livre no Brasil? Infelizmente, na maioria das vezes, não.”
Essa pergunta precisa ser feita — e respondida com coragem — por todos que atuam na atenção ao nascimento. O que deveria ser uma escolha baseada em evidências, valores e desejos da mulher, no Brasil se tornou um reflexo distorcido de um sistema de saúde fragmentado, institucionalmente enviesado e muitas vezes desrespeitoso com o corpo feminino.
O paradoxo brasileiro: cesarianas em excesso e partos vaginais violentos
O Brasil ocupa um lugar incômodo no cenário mundial: somos líderes em cesarianas desnecessárias, especialmente no setor privado. Segundo a última pesquisa “Nascer no Brasil” da Fiocruz, mais de 80% dos partos na rede privada são cirúrgicos, enquanto na rede pública predomina o parto vaginal — mas não sem problemas. Nesse cenário, encontramos dois extremos igualmente preocupantes:
- Na rede privada, mulheres são frequentemente “conduzidas” para uma cesariana — muitas vezes sem que percebam. Essa condução pode se dar por:
- Medo cultural do parto normal, reforçado por décadas de medicalização do nascimento;
- Falta de informação qualificada sobre os riscos e benefícios de cada via;
- Um sistema centrado no profissional e não na mulher, onde a agenda médica pesa mais que o ritmo fisiológico da gestante;
- Narrativas sutis, e outras nem tanto, que deslegitimam o parto normal como “sofrido, arriscado, imprevisível”.
- Na rede pública, a via vaginal predomina, mas frequentemente sem a devida qualidade. Há altos índices de:
- Falta de analgesia adequada e de suporte emocional;
- Intervenções desnecessárias (como episiotomias de rotina e uso indiscriminado de ocitocina);
- Violência obstétrica física e verbal;
- Negação do direito à presença de acompanhante ou de doulas;
- Desrespeito à autonomia da mulher.
Em ambos os cenários, a escolha real é limitada, tutelada ou manipulada. O corpo da mulher ainda é visto como território de controle, não como espaço de decisão e protagonismo.
Mas afinal, o que seria uma escolha livre e informada?
Uma escolha verdadeiramente livre só é possível quando:
- A mulher tem acesso a informações claras, imparciais e baseadas em evidências sobre os riscos e benefícios de cada via de parto;
- Existe tempo e escuta ao longo do pré-natal para que dúvidas, medos e expectativas sejam acolhidos;
- A mulher está cercada por uma equipe que respeita sua autonomia e oferece opções reais de cuidado;
- O sistema oferece estrutura e recursos para viabilizar o parto vaginal com segurança e conforto, incluindo analgesia de qualidade e suporte multiprofissional;
- A cesariana está disponível e acessível quando necessária, sem ser banalizada ou imposta.
O papel do modelo de cuidado ao nascimento
O que está por trás desse desequilíbrio é o modelo de cuidado vigente no Brasil, que ainda se apoia majoritariamente em um paradigma centrado no médico, hospitalocêntrico e intervencionista.
Enquanto em muitos países europeus e escandinavos o nascimento é compreendido como um evento fisiológico que deve ser cuidado por equipes interdisciplinares em um modelo centrado na mulher, o Brasil insiste em tratar o parto como um evento patológico. Isso desestimula a autonomia feminina, reduz a confiança no corpo e transforma o medo do parto em combustível para decisões desnecessariamente cirúrgicas.
É possível mudar esse cenário? Sim. Já estamos mudando.
O Instituto Nascer nasceu com esse propósito: restaurar o protagonismo da mulher no nascimento, oferecer cuidado interdisciplinar e atuar com base na melhor evidência científica disponível. Acreditamos que o parto é consequência de mulheres bem cuidadas — e não apenas de uma via escolhida no fim da gestação.
A transformação já está em curso em várias partes do país, impulsionada por movimentos de humanização, por mulheres cada vez mais conscientes e por profissionais que ousam fazer diferente.
Conclusão: a liberdade começa com o cuidado
A verdadeira liberdade de escolha no parto não está em preencher um formulário dizendo “quero cesariana” ou “quero parto normal”. Ela nasce do encontro entre conhecimento, escuta, acolhimento e respeito. É um processo de construção, não de imposição.
Por isso, seguimos firmes na missão de transformar o cuidado ao nascimento no Brasil. Porque toda mulher tem o direito de escolher com liberdade, viver com dignidade e parir com amor e segurança.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455
Referências científicas:
- Organização Mundial da Saúde (OMS) – WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience (2018)
- ACOG – Committee Opinion No. 761: Cesarean Delivery on Maternal Request (2019)
- Fiocruz – Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento (2014; atualizações 2021)
- Cochrane Library – Planned caesarean section versus planned vaginal birth for women with no previous caesarean section (2020)
- NICE – Caesarean Birth (NG192), 2021
- RCOG – Birth After Previous Caesarean Birth (Green-top Guideline No. 45)