A dor do parto é uma experiência real, intensa e profundamente individual. Não deve ser romantizada, ignorada ou imposta. Em um modelo de cuidado centrado na mulher, o respeito à sua vivência inclui oferecer alívio da dor de forma segura, informada e acessível. Entre os métodos disponíveis, a anestesia peridural é considerada o padrão-ouro da analgesia no parto. Ainda assim, seu uso no Brasil reflete dois paradoxos importantes que merecem ser debatidos à luz da ciência e da humanização.
O que é a anestesia peridural?
A anestesia peridural (ou analgesia peridural) é uma técnica de bloqueio neuroaxial que consiste na administração de anestésicos locais (como bupivacaína ou ropivacaína) e, muitas vezes, de opioides (como fentanil) no espaço peridural — uma região da coluna lombar próxima à medula espinhal. Essa combinação bloqueia seletivamente a condução da dor sem comprometer, quando bem dosada, a mobilidade da gestante.
Quando feita com doses leves, fracionadas e ajustadas ao longo do trabalho de parto, a peridural moderna permite que a mulher sinta as contrações, se movimente e até participe ativamente da fase de expulsão. Trata-se, portanto, de uma ferramenta que pode facilitar — e não atrapalhar — o parto.
O paradoxo brasileiro: entre o excesso e a carência
O Brasil vive dois extremos:
▪️ No sistema público, segundo o inquérito Nascer no Brasil, apenas 14,5% das mulheres que pariram por via vaginal no SUS receberam anestesia peridural. Muitas relatam terem sido informadas de que “não havia anestesista”, “não era necessário”, ou que “mulher nasceu pra aguentar a dor”. Isso não é escolha: é violência obstétrica por omissão de cuidado.
▪️ No sistema privado, por outro lado, a anestesia está amplamente disponível — mas seu uso excessivo, precoce e com doses altas que inibem a mobilidade acaba favorecendo partos mais medicalizados, com maior risco de intervenções como fórceps ou cesariana.
Ambos os cenários refletem falta de preparo institucional e desconhecimento sobre o uso racional da analgesia peridural.
A humanização e o “medo da peridural”: outro paradoxo
No movimento pela humanização do parto, muitas vezes a peridural é retratada como uma inimiga da fisiologia, associada a um parto frio, passivo e mecânico. Embora essa crítica tenha fundamento em práticas antigas — como o uso rotineiro, precoce e com bloqueios motores intensos — a ciência e a prática clínica atual mostram que é possível oferecer analgesia peridural moderna, suave, respeitosa e compatível com o parto fisiológico.
Não se trata de defender a peridural como regra, mas de reconhecer que o protagonismo da mulher também inclui o direito de escolher não sentir dor se assim desejar. E a escolha só é verdadeira quando há acesso, informação e suporte.
Benefícios da anestesia peridural — com base nas melhores evidências
- Alívio eficaz e seguro da dor (considerado o mais eficaz entre os métodos disponíveis).
- Redução de catecolaminas maternas, o que pode favorecer a progressão do parto em casos de dor excessiva ou sofrimento emocional.
- Melhora da experiência materna quando usada sob demanda, com informação e escuta.
📌 “A analgesia peridural reduz a dor significativamente, não aumenta o risco de cesariana, e está associada a maior satisfação materna com o parto.”
(Anim-Somuah et al., Cochrane Review, 2018)
Riscos e efeitos colaterais possíveis (quando mal utilizada ou sem monitoramento adequado)
- Prolongamento da fase expulsiva (em especial com doses altas ou início muito precoce).
- Restrição de mobilidade quando há bloqueio motor intenso — o que pode dificultar o encaixe fetal e aumentar risco de parto instrumental.
- Hipotensão materna, náuseas e tremores (em geral leves e reversíveis).
- Raro risco de cefaleia pós-raqui ou complicações neurológicas em técnicas mal conduzidas.
O que é analgesia peridural moderna?
É a analgesia feita de forma fisiológica, progressiva e personalizada, com técnicas como:
- Doses fracionadas ou em microbolus programados
- Uso de baixas concentrações de anestésico, preservando o tônus muscular
- Monitoramento contínuo da progressão do parto e do bem-estar fetal
- Possibilidade de mobilidade ou posições verticalizadas com suporte
Essa abordagem favorece a manutenção do parto ativo e o protagonismo da mulher — com conforto e liberdade.
A peridural deve ser um direito, não um privilégio
A Organização Mundial da Saúde (OMS), a NICE (Reino Unido) e o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) afirmam que o alívio da dor no parto é parte essencial do cuidado obstétrico seguro e respeitoso. Negar esse recurso é uma falha ética e estrutural.
📌 “Toda mulher tem o direito de receber alívio adequado da dor durante o parto, incluindo analgesia neuroaxial se assim desejar.”
(WHO Recommendations on Intrapartum Care, 2018)
No Instituto Nascer: acesso, ciência e respeito às escolhas
No Instituto Nascer, entendemos que o parto humanizado não é o “parto sem anestesia”, mas sim o parto com escolhas livres, baseadas em evidências e acolhidas com cuidado. Oferecemos analgesia peridural segura e moderna, com anestesistas treinados em parto humanizado, que entendem a importância de doses leves, tempo adequado e escuta ativa.
Defendemos o uso racional, personalizado e respeitoso da peridural, que deve estar disponível para toda mulher — sem excessos, mas também sem ausência.
Porque o verdadeiro parto humanizado é aquele em que a mulher tem voz, tem apoio e tem acesso.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455
Fontes científicas:
- Anim-Somuah M, Smyth R, Cyna AM, Cuthbert A. Epidural versus non-epidural or no analgesia for pain management in labour. Cochrane Database Syst Rev. 2018.
- ACOG Practice Bulletin No. 209: Obstetric Analgesia and Anesthesia. Obstetrics & Gynecology. 2019.
- NICE. Intrapartum care for healthy women and babies. Clinical Guideline [CG190]. 2021.
- WHO. Intrapartum care for a positive childbirth experience. Geneva: World Health Organization; 2018.
- RCOG. Pain relief in labour – Information for You. Royal College of Obstetricians and Gynaecologists. 2022.
- Domingues RM, et al. Nascer no Brasil: a pesquisa nacional sobre parto e nascimento. Fiocruz. 2014.