A perda gestacional no primeiro trimestre é um momento delicado na vida de uma mulher e de seu parceiro. Diante desse diagnóstico, quando a conduta expectante ou medicamentosa não se mostra eficaz — ou não é a opção desejada —, pode ser necessário um procedimento para esvaziamento uterino.
Nesse cenário, surgem duas opções principais: curetagem uterina ou aspiração manual intrauterina (AMIU). Ambas são eficazes, mas diferem em técnica, perfil de segurança, e, principalmente, no impacto sobre o corpo e a experiência da mulher.
Neste artigo, você vai entender, com base nas melhores evidências científicas, as indicações, diferenças e recomendações atuais sobre esses dois procedimentos.
Curetagem: o que é e como funciona?
A curetagem é um procedimento cirúrgico tradicional realizado sob anestesia. Consiste na dilatação do colo uterino, seguida pela introdução de uma cureta metálica (instrumento em formato de colher ou alça) que raspa mecanicamente a parede interna do útero para remover o conteúdo gestacional.
É uma técnica que ainda é amplamente usada no Brasil, principalmente em contextos hospitalares públicos e em maternidades com infraestrutura limitada para alternativas.
AMIU (Aspiração Manual Intrauterina): o que é e como funciona?
A AMIU é uma técnica menos invasiva e mais moderna, recomendada como método preferencial pela OMS e por diversas sociedades científicas internacionais. Utiliza uma cânula flexível acoplada a uma seringa especial, criando vácuo para aspirar suavemente o conteúdo uterino, sem a necessidade de curetagem manual.
Pode ser realizada sob sedação leve, em ambiente ambulatorial ou hospitalar, e costuma provocar menos trauma uterino, dor e complicações.
Quais as principais diferenças entre AMIU e Curetagem?
Característica | AMIU | Curetagem (Legrado) |
---|---|---|
Técnica | Aspiração a vácuo com cânula flexível | Raspagem mecânica com cureta metálica |
Recomendação das diretrizes | Primeira escolha (OMS, ACOG, RCOG) | Alternativa quando AMIU não disponível |
Trauma ao endométrio | Menor risco | Maior risco de lesões |
Complicações (infecção, perfuração, sinéquias) | Menor taxa de complicações | Maior taxa de complicações |
Ambiente necessário | Ambulatorial ou Hospitalar, com sedação leve | Hospitalar, com anestesia |
Tempo de recuperação | Mais rápido | Mais lento |
Sensação de controle | Frequentemente mais positiva | Mais invasiva e desconfortável |
O que dizem as evidências científicas mais recentes?
As principais diretrizes e revisões sistemáticas mostram superioridade da AMIU em diversos aspectos:
- Organização Mundial da Saúde (OMS): recomenda o uso da AMIU como primeira escolha para evacuação uterina em perdas gestacionais precoces. A curetagem deve ser reservada para situações onde a AMIU não está disponível.
- Revisão Cochrane (2015): identificou que a AMIU está associada a menor risco de perfuração uterina, infecção, dor e tempo de internação quando comparada à curetagem.
- ACOG Practice Bulletin No. 200 (2018): afirma que a AMIU é efetiva, segura e preferível em relação à curetagem tradicional para abortamentos do primeiro trimestre.
- RCOG Guideline (2011, atualizado em 2022): enfatiza que a aspiração a vácuo deve ser o método de escolha em perdas precoces, desde que disponível e realizada por equipe treinada.
Além disso, estudos apontam que o risco de sinéquias uterinas (aderências intrauterinas que podem comprometer a fertilidade futura) é significativamente menor com AMIU, especialmente quando comparada a curetagens repetidas ou realizadas com técnica agressiva.
Quando a curetagem ainda é indicada?
Apesar de seus riscos, a curetagem ainda pode ter papel em situações específicas:
- Hemorragia uterina grave que exige intervenção imediata
- Presença de restos placentários firmemente aderidos ou suspeita de infecção uterina
- Quando a AMIU não está disponível
- Casos onde o conteúdo uterino é muito volumoso, dificultando aspiração com cânula (embora isso seja raro no primeiro trimestre)
Mesmo nesses casos, a técnica deve ser realizada com extremo cuidado, por profissionais experientes, e com consentimento informado da mulher.
E quanto ao impacto emocional e à humanização do cuidado?
Para muitas mulheres, o processo de perda gestacional é profundamente doloroso. O modo como o esvaziamento uterino é conduzido pode deixar marcas — físicas e emocionais.
Estudos qualitativos mostram que mulheres submetidas à AMIU relatam menor sofrimento emocional, mais privacidade, menor dor física e maior sensação de protagonismo quando comparadas àquelas submetidas à curetagem.
Portanto, oferecer a AMIU como opção preferencial é também um gesto de humanização, de cuidado respeitoso e centrado na mulher.
Conclusão: a ciência é clara — AMIU é o método preferencial
A escolha entre AMIU e curetagem deve sempre levar em consideração a condição clínica da mulher, sua preferência, o contexto de atendimento e a disponibilidade dos recursos.
No entanto, as evidências científicas e as recomendações das principais instituições de saúde são claras: a AMIU é mais segura, menos invasiva e oferece melhor experiência para a mulher. É, portanto, a melhor escolha na maioria dos casos de perda gestacional no primeiro trimestre.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455
Referências científicas
- WHO. Clinical practice handbook for safe abortion. Geneva: World Health Organization; 2022.
- ACOG Practice Bulletin No. 200. Early Pregnancy Loss. Obstetrics & Gynecology. 2018.
- Cochrane Database of Systematic Reviews. Surgical interventions for incomplete miscarriage. 2015.
- Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG). The Management of Early Pregnancy Loss. Green-top Guideline No. 25. 2022.
- UpToDate. Surgical management of early pregnancy loss. 2024.