Nos últimos anos, observamos um aumento expressivo da prescrição de ferro venoso (intravenoso) na gestação no Brasil, muitas vezes motivado unicamente por uma dosagem isolada de ferritina baixa, mesmo na ausência de anemia. Esse movimento gera dúvidas legítimas: Quando a ferritina deve ser investigada? O que é anemia na gravidez? E, principalmente, quando o ferro venoso está de fato indicado?
Vamos esclarecer ponto a ponto com base nas melhores evidências científicas disponíveis.
O que é a Ferritina?
A ferritina é uma proteína que armazena ferro nos tecidos e representa a principal forma de avaliar os estoques corporais desse mineral.
- Valores normais variam conforme o laboratório e o estado clínico da mulher, mas na gravidez, valores <30 ng/mL geralmente indicam deficiência de ferro, mesmo sem anemia instalada.
- Contudo, valores baixos de ferritina não significam, por si só, indicação para ferro venoso.
A Ferritina deve ser solicitada de rotina no pré-natal?
Não. Segundo as recomendações do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG), Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) e National Institute for Health and Care Excellence (NICE), o rastreio com ferritina não é obrigatório em todas as gestantes, mas pode ser útil nas seguintes situações:
- Hemoglobina normal com sintomas sugestivos de anemia ou fadiga persistente
- Histórico de sangramento aumentado no 1º trimestre ou perdas menstruais prévias intensas
- Gestantes com dieta restritiva (ex: vegetarianas)
- Gestantes com gestações múltiplas
- Mulheres com alto risco de anemia por condições clínicas prévias
Resumo: A ferritina pode ser usada como ferramenta complementar, mas não é exame obrigatório de rotina para todas as gestantes.
O que é Anemia na Gestação?
De acordo com a OMS, anemia na gravidez é definida por hemoglobina <11,0 g/dL (em qualquer trimestre). Essa redução pode ser fisiológica, mas deve ser avaliada e tratada quando confirmada.
Quando tratar com Ferro Oral e Alimentação?
A primeira linha de tratamento da anemia ferropriva na gestação é o ferro oral, especialmente nas formas de sulfato ferroso, fumarato ferroso ou glicinato férrico. O ferro deve ser administrado em jejum (afastado das refeições), ou com suco cítrico, para melhor absorção, preferencialmente em dias alternados, como demonstrado por estudos recentes que mostram melhor absorção e menos efeitos colaterais.
O suporte alimentar também é essencial:
- Carnes vermelhas, vísceras, vegetais verde-escuros, leguminosas e cereais integrais são ricos em ferro
- Vitamina C favorece a absorção do ferro não-heme
- Chá preto, café e alimentos ricos em cálcio devem ser evitados nas refeições com ferro
*Conclusão: O ferro oral, aliado a uma alimentação adequada, é a abordagem inicial recomendada para a maioria das gestantes com anemia leve a moderada.
Quando indicar Ferro Venoso?
O ferro venoso é uma excelente ferramenta terapêutica, mas sua indicação deve ser criteriosa.
Segundo as diretrizes do ACOG, RCOG e NICE, o ferro intravenoso está indicado quando:
- Anemia moderada a grave (Hb <9 g/dL) no 2º ou 3º trimestre
- Falha no tratamento com ferro oral (baixa resposta hematológica após 4 semanas)
- Intolerância importante ao ferro oral, mesmo com ajustes posológicos
- Quadros clínicos em que se deseja rápida reposição de ferro (ex: cirurgia obstétrica programada, hemorragia aguda)
- Síndromes de má absorção intestinal
- Doenças inflamatórias ou infecciosas crônicas que dificultam a absorção do ferro oral
*Importante: Ferritina isoladamente baixa, sem anemia, não é indicação para ferro venoso.
Uso consciente da reposição de Ferro Venoso
É fundamental reforçar que o ferro venoso é uma medicação, com risco de reações adversas, como reações anafilactoides, sobrecarga férrica e elevação desnecessária de ferritina, que, em excesso, pode ter efeitos deletérios na gestação e no bebê.
Além disso, seu uso excessivo sobrecarrega o sistema de saúde, além de promover uma prática não alinhada com a medicina baseada em evidências.
Devemos evitar a medicalização desnecessária da gestação. A gestante não é uma paciente doente por padrão — ela precisa de cuidado, escuta e intervenções fundamentadas na ciência e na prudência.
Mensagem final
A ferritina é uma ferramenta útil, mas deve ser interpretada com critério clínico e não isoladamente. O ferro venoso salva vidas quando bem indicado — mas seu uso deve ser reservado para os casos certos, sob acompanhamento multiprofissional qualificado e com base nas melhores evidências científicas.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455
Fontes:
- ACOG Practice Bulletin No. 233: Iron Deficiency and Anemia in Pregnancy (2021)
- NICE Guideline NG101 – Intravenous iron for iron deficiency anemia in pregnancy
- Royal College of Obstetricians and Gynaecologists – Management of Iron Deficiency Anaemia in Pregnancy
- Cochrane Database of Systematic Reviews – Iron supplementation for women during pregnancy
- UpToDate – Iron deficiency anemia in pregnancy