Especialista acredita que governos devem investir mais em campanhas de conscientização, assim como aconteceu com o pré-natal. “A alimentação e a nutrição da mãe e até do pai no período da pré-gestação podem interferir em até 80% do potencial de saúde de um indivíduo”, diz.
OS PRIMEIROS MIL DIAS DE VIDA DE UM BEBÊ SÃO CONSIDERADOS PRECIOSOS. COMO ELES PODEM IMPACTAR O RESTO DA VIDA?
Os primeiros mil dias são iniciados ainda na concepção, e não no momento do parto, e terminam por volta dos dois anos de idade. Esses mil dias são o período mais ativo do desenvolvimento neurológico de um indivíduo. Vários sistemas primários são formados neste momento da vida, como os circuitos sensoriais (visão e fala), de aprendizagem e memória, de velocidade de processamento, de afeto e recompensa, e até o de planejamento. São áreas ligadas ao funcionamento do corpo, mas também que influenciam na forma com que nos relacionamos. Ainda no útero também somos expostos a substâncias contidas nos alimentos que a mãe ingere, nos medicamentos ou outras drogas que ela consome (álcool ou tabaco), e poluentes. Até o estado de psicológico da mãe provoca reações no feto. E, após o parto, a criança continua absorvendo esses estímulos durante toda a fase de formação do sistema nervoso, já através dos seus próprios sentidos. E esses estímulos vão moldando, desde então, a nossa suscetibilidade a doenças, o apetite, o metabolismo, a inteligência e o temperamento.
DETALHE UM POUCO MAIS QUAIS DEVEM SER AS PREOCUPAÇÕES EM RELAÇÃO ÀS QUESTÕES BIOLÓGICAS E TAMBÉM SOCIAIS NESSA FASE?
A preocupação primordial nas primeiras semanas desses mil dias é garantir os nutrientes necessários para o neurodesenvolvimento. E não estamos falando de calorias, mas de substâncias específicas (proteínas, zinco, ferro, ácido fólico, vitaminas A, D, B12 e B6). Em outras palavras, não importa que a gestante coma mais, mas sim que ela se alimente bem, com uma dieta equilibrada, fornecendo a ela e ao feto o que é necessário. A formação do cérebro é como se fosse a montagem de um andaime: os circuitos mais complexos dependem do sucesso da formação do circuito anterior, e assim sucessivamente. Isso vale também para a formação de outros sistemas e órgãos, criando uma predisposição a doenças no futuro.
E DEPOIS DO PARTO?
A maneira como a mãe e o pai, ou o cuidador mais direto, reagem a certas situações também vai moldando o desenvolvimento dela. Quais as situações em que ela recebe um carinho, quais situações geram estresse nela ou na mãe. Tudo isso influencia. Estudos demonstram que crianças expostas a um ambiente de apoio, com um cuidador próximo e uma dieta saudável, têm um desenvolvimento cerebral bem melhor do que indivíduos que estão inseridos em um ambiente desestruturado, com o chamado “estresse tóxico”, privações emocionais, infecções ou inflamações e uma dieta deficiente.
MUITAS DOENÇAS CRÔNICAS DO ADULTO, COMO OBESIDADE, HIPERTENSÃO OU DIABETES PODEM TER INÍCIO NA VIDA INTRAUTERINA. E A HERANÇA GENÉTICA E O ESTILO DE VIDA?
Muitas pesquisas que servem como base para recomendações da Sociedade Americana de Pediatria demonstram que, por meio do líquido amniótico o bebê já começa a sentir o sabor dos alimentos e a desenvolver suas preferências e predisposições alimentares. Ou seja, se a mãe tiver hábitos alimentares ruins, as chances de a criança desenvolver esses hábitos é muito maior. E o risco de ocorrência dessas doenças citadas, e outras também, são bem maiores para quem possui hábitos alimentares ruins. A obesidade, principalmente, pode ser o “start” para vários outros males. Por isso, a nutrição correta durante a gestação é tão importante. Estima-se que a alimentação e a nutrição da mãe no período da gestação, e até do pai no período da pré-gestação, são fatores que podem interferir em até 80% do potencial de saúde de um indivíduo. Isso é muita coisa, tanto no aspecto pessoal e até no econômico, pois há um impacto significativo no financiamento da saúde pública.
COMO OS PAIS PODEM SE PREPARAR MELHOR PARA ESSE MOMENTO?
O nascimento de uma criança é um momento tão especial da vida de uma família que deve ser planejado com todo o carinho. E esses mil dias devem nortear todas as ações para que haja um desenvolvimento correto do feto, um parto dentro dos desejos da mulher e uma harmonia melhor entre mãe e filho no início da vida do pequeno. E isso deve ser pensado antes da concepção, junto com o médico, apurando quais as condições que a mulher se encontra para engravidar. A partir daí, o profissional de saúde e a mãe traçam todo o planejamento, de acordo com os cuidados prescritos pela medicina e os desejos da mulher. Isso inclui, por exemplo, a dieta que será feita e as atividades recomendadas visando o desenvolvimento da criança ainda dentro do útero, a elaboração do plano de parto, o sustento do bebê nos primeiros meses e a introdução de alimentos sólidos com o passar do tempo. É importante que os pais se informem cada vez mais.
DADOS DA ONU, MOSTRAM QUE O BRASIL ESTÁ ENTRE 51 PAÍSES MAIS SUSCETÍVEIS À DESNUTRIÇÃO. POR OUTRO LADO, O EXCESSO NA ALIMENTAÇÃO INDUSTRIALIZADA TAMBÉM PODE TRAZER PROBLEMAS SEMELHANTES À DESNUTRIÇÃO?
Quando o produto é muito industrializado, há a presença de muitos compostos químicos que, na verdade, até podem ser consideradas venenos. Uma vez no nosso organismo, essas substâncias “competem”, por exemplo, com receptores de hormônios. Assim, não conseguimos absorver os nutrientes, os hormônios passam a funcionar da maneira devida, e vamos ficando desnutridos. Infelizmente, no Brasil, a legislação permite a adição de diversas substâncias químicas, inclusive agrotóxicos, que são proibidos em outros países. Durante os mil dias, o ideal é que a alimentação seja o mais natural possível. Quando a paciente não conseguir alimentos orgânicos, pode usar técnicas para reduzir a quantidade de agrotóxicos, como colocar os vegetais e frutas em solução com bicarbonato de sódio.
QUAIS SÃO OS DESAFIOS PARA QUE GOVERNOS, INSTITUIÇÕES DE SAÚDE E SOCIEDADE POSSAM MELHORAR A ATENÇÃO NESSES PRIMEIROS MIL DIAS?
Acredito que dê para fazer um paralelo com o que aconteceu com o pré-natal. Há algumas décadas, as mulheres não faziam o acompanhamento da gravidez com um médico, resultando em altas mortalidades infantil e materna. O governo realizou campanhas, conscientizou os profissionais de saúde pública e investiu, mesmo que menos que necessário, na estrutura de atendimento, e hoje o índice de mulheres que fazem o pré-natal é bem superior. Agora, para que os mil dias recebam a importância devida, é preciso uma mobilização semelhante, que envolva todo o país. Mas os pais também precisam se conscientizar da importância dessas ações.
O QUE PODEMOS APRENDER COM OUTROS PAÍSES? CITE ALGUNS EXEMPLOS..
O modelo de assistência em saúde mais utilizado na Europa já possui uma maneira mais humanizada de atendimento, com a medicina de família bem mais presente. Isso facilita o acompanhamento da gestante e dos primeiros dias da criança. Nos Estados Unidos, a questão dos mil dias, assim como no Brasil, também é recente, mas eles me parecem bem mais preocupados em debater o assunto e conscientizar a população, muito por causa do grande problema que enfrentam, que é a obesidade infantil. Os americanos já acompanham de perto as consequências da falta de cuidado durante os mil dias e estão empenhados na conscientização entre médicos e pais. Espero que nós brasileiros não esperemos chegar a um nível semelhante de problema de saúde pública para nos conscientizarmos dessa importância.
MATTOS, Litza. Primeiros mil dias na vida de um bebê são fundamentais. O TEMPO, 26/02/20 Disponível em: https://www.otempo.com.br/interessa/saude-e-ciencia/primeiros-mil-dias-na-vida-de-um-bebe-sao-fundamentais-1.2302802