Instituto Nascer

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A dor do parto é um castigo divino? Compreendendo a dor do nascimento sob a luz da ciência, da história e do cuidado.

“Multiplicarei grandemente a tua dor na gravidez; com dor darás à luz filhos”
— Gênesis 3:16

A frase bíblica que por séculos moldou a maneira como a dor do parto é entendida continua ecoando em nossa cultura. Para muitas mulheres, a experiência do parto ainda é envolta em medo, sofrimento e solidão — e parte disso se deve a uma herança que naturalizou a dor como um castigo divino.

Mas será que a dor do parto foi realmente “imposta” à mulher como punição? E mais importante: será que precisa ser vivida como sofrimento?

Hoje, com o apoio da ciência e da antropologia, podemos ressignificar profundamente essa experiência.

A origem teológica: culpa, dor e controle

No relato do Gênesis, a dor do parto surge como uma consequência da desobediência de Eva. Mas os estudiosos modernos, incluindo teólogas feministas, sugerem que esse trecho reflete mais a cultura patriarcal da época do que uma determinação divina imutável.

A palavra hebraica original para “dor” — itzabon — pode ser traduzida também como trabalho penoso, esforço físico intenso. Ou seja, o versículo pode descrever a realidade física do parto, e não uma punição moral.

Durante séculos, esse trecho foi usado para justificar a dor, a passividade feminina e até práticas obstétricas violentas. Mas a ciência tem nos mostrado outro caminho.

A dor do parto na perspectiva antropológica

A antropóloga biológica Wenda Trevathan, referência mundial na evolução do parto humano, explica que a dor do parto tem uma função adaptativa. O parto humano é único entre os mamíferos: temos cérebros grandes e pelves estreitas — o que torna o nascimento um desafio anatômico. Mas essa dor tem função biológica e social.

Segundo Trevathan, a dor serve como sinal de que a mulher precisa de apoio. Nas sociedades humanas, o parto raramente foi um evento solitário. Ao contrário de outros primatas, as mulheres humanas sempre deram à luz cercadas por outras mulheres. A dor, então, “chama a tribo“. Chama cuidado. Chama abrigo.

A fisiologia do alívio: dor, hormônios e vínculo

A médica australiana Sarah Buckley, em seu relatório Hormonal Physiology of Childbearing, explica que o trabalho de parto é um evento neuro-hormonal complexo. A dor do parto, quando não bloqueada de forma artificial e quando vivida com suporte emocional e liberdade de movimento, estimula a liberação de ocitocina e endorfinas — hormônios do amor, da conexão e do alívio natural da dor.

A dor, nesse contexto, não é inimiga, mas parte do processo fisiológico que leva ao nascimento e ao vínculo com o bebê.

Humanização: da dor ao sentido

No Instituto Nascer, entendemos que a dor do parto é real, mas ela não precisa ser sofrimento. Quando acolhida com empatia, liberdade e presença, ela pode ser vivida como intensa, transformadora e até prazerosa.

Garantir o direito ao manejo adequado da dor no parto é uma questão de dignidade e equidade. No Brasil, ainda são poucas as mulheres que têm acesso a um cuidado que respeite suas escolhas — seja com métodos naturais, com apoio contínuo, ou com analgesia medicamentosa como a anestesia peridural. Toda mulher deve ser acolhida, informada e livre para decidir como viver seu parto, com acesso real às melhores opções disponíveis. O protagonismo só existe quando há escolha com suporte.

A verdadeira questão nunca foi eliminar completamente a dor, mas sim perguntar: essa mulher está sendo cuidada? Ela está segura? Respeitada? Protagonista do seu processo?

Conclusão: da culpa à sabedoria do corpo

A dor do parto não é punição. Não é destino trágico. É um convite: ao apoio, ao respeito, à presença e à escuta do corpo.

E quando há cuidado, a dor encontra sentido e o nascimento se torna mais do que a chegada de um bebê — se torna o nascimento de uma mãe.

Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra, Fundador e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 34455

Referências:

  1. Trevathan W. Human Birth: An Evolutionary Perspective. Aldine de Gruyter, 1996.
  2. Buckley SJ. Hormonal Physiology of Childbearing. Childbirth Connection, 2015.
  3. Simkin P, Bolding A. Nonpharmacologic approaches to relieve labor pain. J Midwifery Womens Health. 2004.
  4. Lothian JP. Nonpharmacologic pain relief during labor. J Perinatal Educ. 2004.
  5. Odent M. The Scientification of Love. Free Association Books, 1999.
  6. Organização Mundial da Saúde (OMS). Intrapartum care for a positive childbirth experience. 2018.
  7. Bíblia Sagrada, Gênesis 3:16 — Interpretação linguística do termo hebraico itzabon.

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