“Quando práticas nocivas se escondem sob forma de cuidado”
No Brasil, estudos mostram que 1 em cada 4 mulheres relata ter sofrido violência obstétrica durante a gestação, o parto ou o pós-parto. Esses dados já são alarmantes. Mas, na minha prática e na escuta de muitas mulheres, percebo algo ainda mais preocupante: existe uma face invisível da violência obstétrica.
Essa face invisível aparece quando a mulher sofre uma conduta desrespeitosa, invasiva ou desnecessária, mas não reconhece que aquilo foi uma violência. Ela acredita que “era o jeito certo”, que “era para o bem do bebê”, ou que “todo parto é assim mesmo”. É uma violência normalizada, silenciosa — e justamente por isso, ainda mais difícil de combater.
Por que essa face é invisível?
A invisibilidade da violência obstétrica nasce de um modelo de cuidado que, por décadas, ensinou mulheres a obedecer, não a participar.
Algumas razões para essa cegueira social incluem:
- Cultura do “o médico sabe mais”: decisões são tomadas sem explicações ou sem ouvir a mulher.
- Falta de informação sobre direitos: sem saber que pode recusar um procedimento, a mulher acredita que não havia alternativa.
- Romantização da dor e do sofrimento: a ideia de que “parir é sofrer” e que questionar é sinal de fraqueza.
- Naturalização de práticas obsoletas: como a episiotomia de rotina, a manobra de Kristeller ou a restrição de acompanhante.
- Memória afetiva e justificativa: para proteger-se emocionalmente, a mulher pode reinterpretar a experiência como “necessária” para evitar o peso emocional de reconhecer que sofreu violência.
Exemplos de violências invisíveis
- Realizar procedimentos sem consentimento informado, como romper a bolsa, fazer episiotomia ou aumentar a ocitocina.
- Negar analgesia sem justificativa clínica.
- Impedir posições livres durante o trabalho de parto.
- Realizar exames de toque repetitivos e sem privacidade.
- Fazer comentários depreciativos ou infantilizar a paciente.
O mais grave: quando essas práticas são apresentadas como “padrão de cuidado”, a própria mulher pode defender o que viveu, acreditando que foi “para salvar o bebê” ou “porque é assim que funciona”.
O impacto dessa invisibilidade
A violência obstétrica visível já deixa marcas profundas, mas a invisível pode ser ainda mais insidiosa.
Quando a experiência é reinterpretada como “normal”, a mulher pode:
- Evitar questionar condutas futuras, perpetuando o ciclo.
- Recomendar práticas nocivas a outras gestantes, acreditando estar ajudando.
- Sentir culpa ou inadequação se busca algo diferente do “padrão” em uma nova gestação.
Além disso, a invisibilidade dificulta mudanças estruturais: o que não é reconhecido, não é denunciado — e o que não é denunciado, não é transformado.
O que dizem as evidências
Revisões sistemáticas, como a de Bohren et al. (2015, PLOS Medicine), mostram que a violência no parto vai desde abusos explícitos até condutas mais sutis, mas igualmente danosas. A OMS (2014) afirma que práticas sem consentimento, comunicação ineficaz e falta de privacidade configuram desrespeito e abuso, mesmo que travestidos de “rotina hospitalar”.
Diretrizes do NICE e do RCOG são claras: qualquer intervenção no parto deve ser baseada em evidências, indicada por necessidade clínica e precedida de consentimento livre e esclarecido.
Como tornar o invisível visível
- Educação para gestantes e famílias: informação clara sobre direitos, procedimentos e alternativas.
- Transparência no cuidado: explicações sobre cada conduta, com possibilidade real de recusa.
- Cultura de escuta: valorizar relatos, mesmo quando a mulher não usa o termo “violência”.
- Mudança na formação profissional: incluir ética, comunicação e cuidado centrado na mulher como pilares da prática obstétrica.
- Promoção do protagonismo feminino: lembrar que a mulher é a autoridade máxima sobre seu corpo e seu parto.
No Instituto Nascer
No Instituto Nascer, acreditamos que não existe cuidado verdadeiro sem respeito. Combatemos tanto a violência obstétrica visível quanto a invisível, devolvendo à mulher a informação, a autonomia e o protagonismo. Nosso compromisso é claro: parto humanizado, interdisciplinar e 100% baseado em evidências científicas — porque cuidado de verdade não deixa marcas violência.
Hemmerson Henrique Magioni, Médico Obstetra e Diretor Técnico do Instituto Nascer – CRM-MG 3445
Referências
- Bohren MA, et al. The mistreatment of women during childbirth in health facilities globally: a mixed-methods systematic review. PLoS Med. 2015;12(6):e1001847.
- World Health Organization. The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based childbirth. WHO, 2014.
- NICE. Intrapartum care for healthy women and babies. Updated 2021.
- Royal College of Obstetricians and Gynaecologists. Better for women. 2019.
- FIGO. Statement on respectful maternity care. 2021.